Hoje é dia de parceria aqui no blog. Para quem não sabe, sou uma Educadora Parceira da Companhia da Educação, o departamento de educação da editora Companhia das Letras. Todo mês, vou receber um livro da editora para resenhar para vocês e o livro do mês é "Trama de meninos", de João Anzanello Carrascoza. Aqui no blog já tem um post sobre um outro livro desse mesmo autor que eu amo demais: Aos 7 e aos 40.
Quando o livro chegou em casa, confesso que fiquei até um pouco desapontada, porque ele é muito pequeno - do tamanho da minha mão e minha mão é praticamente de criança. Mas, ao começar a lê-lo, é claro que eu fui lembrada de uma máxima adaptada: não podemos julgar um livro pelo seu tamanho. Que soco. Foi isso o que senti logo na leitura dos primeiros contos. Um soco no estômago ao me deparar com uma realidade tão comum e cotidiana, mas ao mesmo tempo tão cheia de sentimentos, de saudade e de dor.
São 14 contos que tratam, principalmente, das relações familiares e de tudo que vem com elas. Lembranças e memórias felizes, mas também separações, perdas, distanciamentos, desencontros. Os contos estão organizados em duas partes e, segundo o autor (veja live abaixo), são mesmo um grande emaranhado, uma trama costurada com palavras. Os contos foram organizados de maneira espelhada, por isso os 7 contos da Primeiros Fios dialogam e espelham as narrativas dos 7 contos dos Segundos Fios, mas na ordem inversa: o primeiro conto da primeira parte espelha o último conto da segunda parte - e assim sucessivamente.
Eu gostei muito do livro, com certeza é uma obra que pode e deve ser lida e estudada em sala de aula. Durante a leitura dos contos, fiquei pensando em quais anos eles poderiam ser lidos. Com certeza, podem ser lidos por alunos do 9º ano em diante, mas tenho certa dúvida se o livro deveria/poderia ser lido com turmas do 8º ano, pois não sei se eles teriam maturidade para lidar com a dureza de algumas histórias. Cabe, então, a cada professor(a) analisar a maturidade dos alunos. - ou selecionar alguns contos específicos para trabalhar em sala de aula.
Abaixo seguem algumas sugestões de atividades que podem ser realizadas ao longo da leitura do livro e suas respectivas habilidades - selecionei apenas habilidades referentes ao 8º e 9º anos, pois só dou aula para turmas do Ensino Fundamental 2 e não tenho muita familiaridade com as habilidades da BNCC do Ensino Médio. No final do post, há a indicação de vídeos.
ATIVIDADES QUE PODEM SER FEITAS EM SALA DE AULA
1. O que nos diz o título do livro?
É interessante analisar com os alunos os três possíveis sentidos da palavra "trama": 1)como sinônimo de narrativa/enredo; 2) no sentido de bordado, costura; e 3) no sentido de "tramar", aprontar algo, fazer alguma brincadeira de criança. Além disso, podemos discutir as possíveis relações entre a imagem da capa, o título e os enredos dessas 14 histórias. Após essa análise inicial, recomendo fazer a leitura do conto "Linho" em que o autor retoma esse jogo de palavras entre trama, linhas, costuras.
(EF89LP33) Ler, de forma autônoma, e compreender – selecionando procedimentos e estratégias de leitura adequados a diferentes objetivos e levando em conta características dos gêneros e suportes – (...) contos contemporâneos, (....) dentre outros, expressando avaliação sobre o texto lido e estabelecendo preferências por gêneros, temas, autores.
2. Qual é a estrutura de um conto?
Quando se fala em conto, espera-se um texto narrativo em prosa com a estrutura situação inicial, conflito, clímax e desfecho. Embora boa parte dos textos desse gênero se encaixem nessa estrutura, é possível tensioná-la. Os contos "Os dois" e "Nuvem" permitem discutir com os alunos o que seria um conto. Enquanto o primeiro segue essa estrutura clássica, o segundo é escrito em versos. Pode um conto ser escrito em versos? Seria interessante debater com os alunos.
Esses contos também permitem outras análises/discussões interessantes sobre questões estruturais do texto, como foco narrativo e perspectiva. Um dos textos (o primeiro) é narrado em 1ª pessoa a partir da perspectiva do filho do casal (uma criança) enquanto o outro é narrado em 3ª pessoa na perspectiva de um adulto. Dessa forma, a leitura conjunta desses contos permite a análise dos efeitos de sentido construídos pelo foco narrativo e pela perspectiva dessa narração.
O conto "Os dois" tem como temática a violência contra mulher e lê-lo seria uma forma de levar essa discussão para a sala de aula - no entanto, aviso que achei esse conto bem pesado, foi uma leitura difícil pra mim.
(EF69LP44) Inferir a presença de valores sociais, culturais e humanos e de diferentes visões de mundo, em textos literários, reconhecendo nesses textos formas de estabelecer múltiplos olhares sobre as identidades, sociedades e culturas e considerando a autoria e o contexto social e histórico de sua produção.
(EF69LP47) Analisar, em textos narrativos ficcionais, as diferentes formas de composição próprias de cada gênero, os recursos coesivos que constroem a passagem do tempo e articulam suas partes, (...) identificando o enredo e o foco narrativo e percebendo como se estrutura a narrativa nos diferentes gêneros e os efeitos de sentido decorrentes do foco narrativo típico de cada gênero, da caracterização dos espaços físico e psicológico e dos tempos cronológico e psicológico, das diferentes vozes no texto (...).
3. A linguagem na obra de Carrascoza
Uma das coisas que amo nos textos do Carrascoza é seu precioso trabalho com a linguagem. Em seus livros, parece que cada palavra é minuciosamente escolhida, pensada e trabalhada. Esse trabalho precioso e poético pode ser observado em todos os contos desse livro, mas me saltou aos olhos principalmente nos contos "Linho" (como já pontuei na atividade 1) e no conto "Pedaços". Nesse último, um pai pede uma pizza e esse alimento revive nele todas as memórias de seu filho. Veja, abaixo, um trecho do texto:
Oito fatias: assim está escrito nos cardápios. Mas prefiro dizer oito pedaços. Fatias designam partes de um todo. Pedaços se revelam fragmentos de um todo em desintegração. Um filho que chega: fatia. Um filho que se vai: pedaço. E eu, pai, inteiramente despedaçado, ali. Diante da pizza que eu pedira pelo telefone. Justo eu que deveria me conceder o máximo possível o esquecimento - essa trégua redentora. Sem fome, transporto uma fatia de pizza da embalagem para meu prato. (p. 58-59)
Eu sempre falo da importância de selecionar trechos dos livros e analisar com os alunos o trabalho com a linguagem realizado pelo(a) autor(a), porque é muito importante que nossos alunos sejam capazes de identificar, entender e se emocionar com o jogo de palavras como esse do trecho que selecionei. Para nos tornarmos leitores literários, precisamos saber apreciar o que há de belo na literatura - não podemos resumir nossas aulas a questões de estrutura e enredo (que são importantes também, mas é preciso ir além).
(EF89LP37) Analisar os efeitos de sentido do uso de figuras de linguagem como ironia, eufemismo, antítese, aliteração, assonância, dentre outras.
(EF69LP46) Participar de práticas de compartilhamento de leitura/recepção de obras literárias/ manifestações artísticas (...), tecendo, quando possível, comentários de ordem estética e afetiva e justificando suas apreciações (...).
(EF69LP49) Mostrar-se interessado e envolvido pela leitura de livros de literatura e por outras produções culturais do campo e receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativas, que representem um desafio em relação às suas possibilidades atuais e suas experiências anteriores de leitura, apoiando-se nas marcas linguísticas, em seu conhecimento sobre os gêneros e a temática e nas orientações dadas pelo professor.
4. Produção de texto
Um dos aspectos mais interessantes desse livro é a variação de foco narrativo e de perspectivas. Ao lê-lo, temos acesso a famílias e suas histórias sob perspectivas muito diferentes: dos filhos, dos pais, dos irmãos, das mães... Que tal desafiar seus alunos a assumirem uma perspectiva que não seja a deles?
Uma atividade legal seria pedir para que eles escrevam uma crônica para relatar um acontecimento da sua vida, porém a partir da perspectiva do pai ou da mãe. Como a mãe narraria um dia em que o filho ficou doente? Como o pai contaria a história da formatura da filha?
(EF89LP35) Criar contos ou crônicas (em especial, líricas), crônicas visuais, minicontos, narrativas de aventura e de ficção científica, dentre outros, com temáticas próprias ao gênero, usando os conhecimentos sobre os constituintes estruturais e recursos expressivos típicos dos gêneros narrativos pretendidos, e, no caso de produção em grupo, ferramentas de escrita colaborativa.
Espero que tenham gostado da resenha e das sugestões de atividades.
Compartilhem este post com outros professores e professoras de Língua Portuguesa.
Abaixo, seguem duas indicações de vídeos.
RESENHA DO LIVRO
LIVE DE LANÇAMENTO DO LIVRO COM A PARTICIPAÇÃO DO AUTOR
Na seção PARA LER NA ESCOLA, você vai sempre encontrar resenhas de livros literários (também conhecidos como paradidáticos) que são adequados para ler com os alunos do Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio. Também haverá sugestões de atividades, exercícios e temas que podem ser trabalhados com os alunos durante a leitura.
TRAMA DE MENINOS
João Anzanello Carrascoza
Lançado em 2021, 120 p.
Editora Alfaguara
Os catorze contos deste livro se constroem e se espraiam como finas tramas da experiência humana. Os contos de Carrascoza nos trazem experiências delicadas e marcantes, felizes e tristes, numa tessitura minuciosa sobre os anseios de cada um de nós. Em "Começo", história que abre este volume, um pai sente a tristeza da despedida. O filho vai pegar a estrada e voltar para a cidade, depois de um dos poucos finais de semana em que estiveram juntos.
No conto final, "Últimas", há um pai que aguarda. Aguarda seu filho, que percorre a estrada para encontrá-lo, depois de tanto tempo sem se verem. Mas há interrupções no caminho, há imprevistos, e, assim como o pai, nós leitores nos angustiamos com sua demora, ansiamos pela sua chegada, quando finalmente estará seguro.
Entre a despedida de um pai e a espera de outro, tramas de vidas se entrelaçam, se completam ou se desfazem. Algumas são interrompidas de forma trágica. Outras claudicam, chegam perto da ruína, mas se regeneram com fios mais fortes. Há saudade pelos que se foram, há luta, há esperança na abertura de novas possibilidades.
Indicado para: 9º ano e Ensino Médio
Temas: amadurecimento, conflitos da adolescência, relacionamentos familiares, perdas e luto, separação.